Em feriados nacionais, o pessoal do trekking sempre tem suas travessias e trilhas favoritas. Infelizmente o resultado é, muitas vezes, trilhas tumultuadas, campings lotados, cachoeiras sempre cheias - e muito lixo e “outros detritos” pelo caminho. Se você já fez Lapinha x Tabuleiro, Serra do Cipó, Petrópolis x Teresópolis ou várias trilhas da Chapada Diamantina, Chapada dos Veadeiros, Serra da Canastra, Agulhas Negras e até mesmo Serra Fina etc, entende bem do que estou falando!…
Por esses motivos, tenho costume de seguir um pouco na contramão, preferindo algumas aventuras menos conhecidas, mas bastante significativas e belas, para levar meus grupos em caminhada.
Umas dessas travessias, que sempre faz meu coração bater mais forte, começa num vilarejo de Serro, em Minas Gerais, atravessando o coração da Cordilheira do Espinhaço Mineiro, entre trilhas montanha, chapadões, cerrado, sem falar nas várias cachoeiras pelo caminho, até finalizar no pacato município de São Gonçalo do Rio Preto - mais precisamente, no interior do Parque Estadual do Rio Preto, um dos mais bem estruturados e belos parque que já conheci em minhas andanças.
É a Travessia Itambé x Rio Preto - alguns também a chamam de Travessia Entreparques, Travessia dos Parques… mas no final, é a mesma aventura. Com pequenas variações de trajeto, ela pode totalizar entre 50km e 68km. Pode ser realizada em três, quatro ou cinco dias, de acordo com a disponibilidade do grupo. Entretanto, trekkeiros experientes ou grupos menores e bem animados podem realizá-la em dois dias - já fiz dessa maneira, com mais dois amigos e não recomendo, pois não se tem oportunidade de desfrutar de todos os atrativos e encantos que a trilha oferece.
Há ainda a possibilidade de realizar a travessia acampando, ou pernoitando em casas de nativos e nas dependências do Parque do Rio Preto. Você pode também contratar mulas cargueiras para levar a bagagem, facilitando assim a progressão e diminuindo o nível de severidade do trajeto.
Como vê, são muitas as possibilidades de formatos na realização da Travessia dos Parques - e olha que nem falei da possibilidade de estender essa travessia à Parna Sempre-Vivas, o que elevaria exponencialmente o percurso, o nível de severidade, e as belezas durante a aventura!...
Quando penso na Travessia Itambé x Rio Preto, não me vem à mente a sua incontestável beleza cênica ou quilometragem, nem as cachoeiras, nem mesmo seus desafios físicos e psicológicos. Não!
Meu carinho especial remete ao caloroso acolhimento no sitiozinho em Bica d’Água, pela dedicada e hospitaleira atenção da equipe do Parque do Rio Preto… sem falar da noite eufórica na Casa do Mozart e pela janta, em que todos do grupo se empenham para garantir uma verdadeira ceia. Me lembro ainda da caminhada insólita pela Chapada do Couto, em que o Sol inclemente se revela meu inusitado companheiro…
Durante a caminhada, me reencontro com minha Minas Gerais, com seus costumes e tradições, sua força e autenticidade. Volto para casa com renovado orgulho em “ser” mineiro! Sempre que posso, coloco essa aventura em minha agenda.
PARQUE DO ITAMBÉ - UMA JÓIA DA BIODIVERSIDADE
A região pertencente ao Parque Estadual do Pico do Itambé é conhecida como “caixa d’água”, pelas várias nascentes que abriga e por ser divisor de duas bacias hidrográficas: Jequitinhonha e Doce. O parque tem como maior destaque o Pico do Itambé, com 2.052 metros de altitude, um dos marcos referenciais do Estado e ponto culminante da Cordilheira do Espinhaço. Essa formação característica dá origem a várias cachoeiras em seus domínios e entorno - Cachoeira da Água Santa, da Neném, do Rio Vermelho, da Fumaça, Cachoeira do Tempo Perdido, além de várias cachoeiras próximas, em Milho Verde e São Gonçalo do Rio das Pedras
PARQUE DO RIO PRETO - UM DOS MAIS BELOS DO ESTADO
Já o Parque Estadual do Rio Preto, criado em 1993 para proteger as nascentes do rio Preto - importante afluente da margem esquerda do rio Araçuaí, depositário do rio Jequitinhonha. A beleza cênica de suas paisagens sobretudo de Cerrado, marcadas por imensos afloramentos rochosos e as inúmeras cachoeiras e piscinas naturais - como a Cachoeira dos Crioulos e a Cachoeira da Sempre-Viva - enchem os olhos dos visitantes. No interior do parque está fincado o último totem da Estrada Real, o que remete a um passado em que o garimpo de ouro e pedras preciosas era a principal atividade econômica por essas bandas, transportando as riquezas minerais de Diamantina a Paraty, no Rio de Janeiro.
Para a realização da travessia, importante ressaltar a necessária autorização dos dois parques - Parque Estadual do Pico do Itambé e Parque Estadual do Rio Preto. Não é uma boa ideia realizar a travessia sem a referida autorização - há guarda-parque vigiando boa parte do trajeto.
PRIMEIRO DIA
De Capivari (ou Santo Antônio) até o sítio do Sô Santo
Para iniciar o trekking, há duas possibilidades: iniciar por Santo Antônio do Itambé ou por Capivari.
A travessia via Santo Antônio possui maior percurso, atravessando o cume do Pico do Itambé, para de lá seguir rumo a Capivari, até encontrar uma porteira com uma placa indicando a comunidade de Bica d’Água à direita da trilha.
Recomendamos ao caminhante que inicia a jornada por Santo Antônio, que acampe no cume do pico no primeiro dia, devido à grande exigência no trajeto, caso prossiga ininterruptamente até Bica d’Água - e também para aproveitar e apreciar um visual imperdível de 360º da região, visto lá do alto. Em dias de céu limpo, é possível avistar ao longe o maciço da Cachoeira do Tabuleiro, em Conceição do Mato Dentro, o Morro Dois Irmãos, no sentido de Felício dos Santos, bem como várias cidades, vales, matas e vilarejos. Além do mais, dá pra curtir com calma algumas boas cachoeiras pelo caminho até o pico: as Cachoeiras do Rio Vermelho, do Neném e da Água Santa.
A caminhada, se iniciada por Capivari - um acolhedor e bucólico vilarejo pertencente a Serro/MG - não exigirá a subida ao Pico. Bem antes do ataque, a plaquinha da Bica d'Água já se apresenta, desta vez orientando no sentido à esquerda.
Após a “dita cuja” placa, seguiremos em uma trilha entre o Pico do Itambé e a Serra da Bicha, cruzando algumas capoeiras, trechos de mata e descidas em cascalheiras. Um bom lugar para refrescar os pés, é o córrego da Serra da Bicha, que cruza a trilha - ele nasce a poucos quilômetros desse ponto. A partir desse ponto, acompanharemos o leito do córrego ao longo da trilha.
Um visual menos conhecido do Pico do Itambé chama atenção. À direita da rota, o maciço rochoso cria uma formosura ímpar que encanta os olhos, ao longe. A Cachoeira da Cortina - na verdade, é uma queda de aproximadamente uns 30 metros que some repentinamente e, para assombro, volta a verter por mais cerca de 40 metros, em meio ao paredão - dá a impressão de serem duas cachoeiras. Uma lindeza!
No meio da tarde, chegamos ao nosso ponto de apoio, na entrada da comunidade rural de Bica D'água - o sítio do Sô Santo. A casinha antiga ornada por belas flores coloridas - vestígios de cuidadosas mãos femininas -, foi construída em pau a pique e regularmente pintada com cal, possui cobertura de fibrocimento - nas primeiras vezes que lá me hospedei, ainda era recoberta de folhas de sapé - tendo ao lado um pequeno estábulo. Os quatro ou cinco cães anunciam com alarde a chegada do grupo. O sítio nos remete aos tempos quando se tinha o costume de construir a cozinha e o banheiro fora de casa. Sô Santo abre a porteira e nos recepciona com seu cordial sorriso - um sinhozinho forte da lida, com aperto de mão firme e sempre portando chapéu de feltro.
Enquanto conversamos, o grupo imediatamente se alivia das mochilas; ele destranca a porta da casa e vamos nos organizando em seus quartinhos.
Nem bem o pessoal do grupo se aloca, já os convido para apreciar o bônus, que passou despercebido - uma cachoeira poucos metros à frente da casa! O grupo se farta nas águas deliciosas dos poços e ofurôs que se formam das quedinhas. Isso, pra nós, é a verdadeira riqueza - viver assim, longe de tudo, num lugar com todo tipo de pé de fruta, e ainda com uma “cachoeira particular”!
A Dona Maria nos convida a um cafezinho antes da janta - comida simples, mas muito saborosa, com um franguinho que ela apanhou do galinheiro mais cedo, umas verduras e o anguzinho de roça que comemos com muito gosto e satisfação, sob os banquinhos de tábua próximos ao seu forno de lenha. Aproveito para presentear, como de costume, com uma cachacinha ao dono da casa, que recebe com gosto.
Os mais resistentes ainda permanecem até as 20h, 20h30. Mas na roça, o olho pesa assim que o Sol se põe e, em pouco tempo, todo mundo está em sua sinfonia particular, num profundo e deleitoso sono.
SEGUNDO DIA
Do sítio do Sô Santo à Casa do Mozart
De manhã, o café sai cedo - forte e fumegando do bule! Não nos demoramos a arrumar as tralhas e nos despedirmos desse generoso casal. Dali pra frente, alguns ainda teimam em não acreditar que aquele lugar paradisíaco realmente existira, que aquele casal era mesmo de verdade…
Alguns quilômetros à frente, driblamos um curral e damos de encontro com o Sumidouro do Jequitinhonha Preto. Durante os pulos entre as rochas, ouvimos as águas correndo às escondidas, lá embaixo. Agora é hora de subirmos um forte morro por cerca de uma hora ininterrupta - a presença de carrapatinhos nesse trecho próximo a pastagens bastante tomado por braquiárias e matinhos salientes nos impõe borrifarmos pulfo (um tipo de talco veterinário) uma marcha forçada e contínua!
No final da subida, chegamos próximo a uma escola - segundo dizem, construída por um casal de benfeitores alemães. Um lugar propício ao descanso - atrás, uma bica de água potável, uns pés de limão e uma hortinha com algumas couves - humm, acho que virão a calhar para o nosso jantar, mais tarde!...
Após o providencial descanso, dá-lhe caminhada! Em pouco tempo - após nos avizinharmos da Fazenda Chapadócia - enfrentaremos um dos lugares mais incríveis e insólitos que já conheci: a Chapada do Couto. Uma estradinha sem fim, sem árvores, sem sombras, só algumas rochas de formatos curiosos aqui e ali, e o inclemente astro-Rei, sempre a nos impor reverência!... Mas o visual não deixa a desejar: à esquerda podemos divisar ao longe Diamantina e, se virarmos, o Pico do Itambé e a Serra da Bicha ainda nos vigiam, majestosos.
A estrada segue hora e meia, até avistarmos ao longe o Morro Redondo, já nos domínios do Parque Estadual Parque do Rio Preto. Subimos para descansar um pouco e contemplar o belo panorama - o Morro Dois Irmãos, que se ergue a 1.825m de altitude e a chapada que deixamos para trás. Uma minúscula guarita no cume do Morro Redondo abriga guarda-parques e brigadistas alertas, principalmente em épocas de queimadas na região.
Descemos o morro e, em pouco tempo, nova parada, agora acompanhado de uma rápida prosa com os guarda-parques do Parque do Rio Preto, em um rancho que lhes serve de ponto de apoio.
O grupo segue, já visivelmente cansado, por entre as tortuosas trilhas, sempre na esperança de que o nosso ponto de dormida apareça na próxima curva. Após uma pequena porção de quilômetros, enfim chegamos à Casa do Mozart. As chaves do local nos esperam próximas à janela de madeira.
A Casa do Mozart é um ponto de apoio a pesquisadores e caminhantes do Parque. Um local simples, dotado de dois quartos, uma sala, um banheiro de água fria e uma cozinha com fogão a lenha e a gás. Um armário com algumas panelas, condimentos, óleo e um pouco de arroz deixado pelo último grupo - prática comum nesse ponto de apoio, deixar o alimento excedente para a próxima equipe de trekking. A luz, fraquinha, é fornecida por meio de painéis solares. Em volta da casa, algumas serras, morros e matas. Fora isso, nada de resquícios de civilização a dezenas de quilômetros. Assim que é bom!...
À noite, hora da janta. Grande alvoroço, todos se amontoam na cozinha, cada um ajudando para realizar uma “senhora” ceia comunitária! Um leva o feijão, outro o arroz, o bacon, a linguiça e o macarrão “aparecem” das mochilas - não podemos nos esquecer daquela couve, apanhada da escola, mais cedo!... Não falta um com seu cantilzinho de cachaça ou uísque, pra animar o repertório da prosa! Em noites estreladas, o grupo se reúne do lado de fora pouco antes de dormir; apaga as luzes e celulares, apenas para observar em silêncio a divina beleza da abóbada celeste.
TERCEIRO DIA
Da Casa do Mozart até a Sede do Parque
De manhã, os primeiros raios de Sol rebatem nas serras logo em frente, conferindo-lhes um visual surreal! Durante o café, o mesmo alvoroço da noite anterior, mas a diretiva é sairmos bem cedo para poder aproveitar as cachoeiras pelo caminho.
E pé na trilha! Seguiremos neste dia em direção à sede do Parque do Itambé. Após alguns trechos de descidas serpenteantes - em locais como esse, o grupo toma consciência da importância das botas de trekking, para não escorregar em meio à cascalheira! -, damos uma parada no Córrego das Éguas, quase no nascedouro - um fiapinho ainda! Os guarda-parques vistoriam diariamente todo o curso do córrego, de modo que as suas águas, ao chegarem nos trechos visitados do parque, permanecem límpidas. Nesse trecho a sua coloração mais escura - fruto de sua passagem entre rochas com alto teor de óxido de ferro - ainda não é tão pronunciada.
Volteando o Morro do Alecrim, logo chegamos à Lapa do Zé Baiano (ou Saco do Garrote) com algumas pinturas rupestres, e paramos para reagrupar e encostar os ossos - o Sol se impõe, e qualquer sombrinha, por menor que seja, já é uma ótima proteção. Alguns tipos de bromélias, orquídeas, canelas-de-ema e quiabos da lapa se apresentam nesse ambiente, bem como árvores retorcidas de troncos rústicos, típicas do Cerrado Mineiro.
A caminhada avança, cruzando o Córrego das Éguas várias vezes, até toparmos com uma pinguela e, logo abaixo, o vislumbre de um grande poço de águas escuras - a antevisão da famosa Cachoeira do Crioulo.
Mais um pouco de trilha e logo chegamos à prainha em frente a uma das mais belas cachoeiras de Minas! E o povo se esbalda, se refrescando após uma manhã inteira de caminhada sob o Sol.
Não dá vontade de sair - mas o parque ainda nos reserva algumas surpresas. Prosseguimos a travessia a contragosto, dando adeus à maravilhosa queda d’água. Poucos quilômetros adiante, ao acompanharmos o sonolento avanço do curso de rio, a Cachoeira das Sempre-Vivas também se apresenta e nos convida a mais um delicioso banho! Difícil recusar: jatos fortes massageiam nossos ombros cansados das cargueiras!..
Embora a vontade de ficar indefinidamente nessas águas revigorantes seja tamanha, ainda temos um bom pedaço de chão pela frente!... A caminhada é mais tranquila a partir do trecho de encontro do rio Preto com o córrego das Éguas conhecido como Forquilha, com longos segmentos de mata fornecendo abrigo do Sol e trilhas bem delineadas e abertas, facilitando a progressão.
E no finalzinho da tarde, finalmente chegamos à sede do Parque, onde o grupo “desaba” nas mesas do restaurante - com um refrigerante ou cerveja à mão, todos brindam à conquista recente, uma travessia lindíssima e igualmente exigente pelo Sertão Mineiro, na Região dos Diamantes!
A partir daí, pode-se escolher ficar mais um dia, para descansar e conhecer na manhã seguinte outro belo atrativo do parque - o Poço do Veado, um lugar delicioso cujo nome deriva da enorme lapa em frente, com inscrições rupestres aludindo a rituais de caça do dito animal - ou partir pra casa logo que terminarmos a janta. Após várias sugestões, reformatei o meu roteiro para podermos aproveitar ao máximo as belezas naturais do entorno.